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A Chaleira

Você tem um objeto sagrado, aquele que trás mais recordações do que uma foto? Pois eu tenho. Na verdade, não um objeto específico, mas qualquer chaleira chiando no fogão me remete à um tempo que não volta.


Falo mais sobre ela no texto abaixo:


Na casa do meu avô sempre tinha uma chaleira com água esquentando no fogão. Logo pela manhã, ela era usada para o café. O líquido quente, em con

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tato com o pó escuro, oferecia o aroma de todas as manhãs. Quando já estávamos servidos e prontos para ir para a escola, o vô completava novamente com água e a chaleira estava pronta, aguardando o momento em que voltaria a servir, com o líquido do seu interior fervendo, dessa vez para auxiliar na comida, que ele gostava de preparar desde cedo.



Íamos para o colégio e quando voltávamos, a mesa estava posta, pratos servidos, almoço pronto para ser degustado. E ela, a chaleira, ali, a postos, com a água até o bico, em ponto de ebulição, aguardando o momento certo para entrar em ação, quando a louça suja seria depositada na pia e ela encerraria o seu primeiro turno de expediente, despejando o líquido quente sobre os pratos, para eliminar todo e qualquer resquício da refeição, preparada com capricho e afeto por aquele que era a meu companheiro e cuidador de todos os dias.



Após um período de descanso, ela, a chaleira, voltaria ao fogo, desta vez para o café da tarde, outro momento ao redor da mesa que o vô não abria mão. Depois de fazermos as tarefas de casa, ele perguntava se não queríamos ir na padaria, buscar pão quentinho. De início íamos nós três, eu, meu irmão e o vô, com seu andar rapidinho e corpo curvado, lembrando uma tartaruguinha. Depois, na medida em que os anos foram passando, somente eu e o vô percorríamos as poucas quadras até a padaria. Por fim, somente eu ia. Nas sacolas, o pão, guloseimas compradas com o troco e doces memórias de um tempo que não volta mais, das tardes cumpridas, embaladas pelo aroma de mais um bule de café sendo preparado com ela, a chaleira.



Depois de adulta, já casada, chego na casa dos meus sogros e me deparo com ela, não a mesma, claro, mas uma legítima substituta daquela que dividiu comigo os dias mais quentes do verão e as tardes frias dos invernos. Lá estava a chaleira, no fogão, chiando, quase que chamando o sogro para o seu chimarrão matinal. Enquanto ele prepara o mate, olho para o utensílio em cima do fogão e sinto o peito apertar. Ela, a chaleira, é a memória concreta de uma falta que me habita. Toda vez que a água chiar em algum lugar que eu estiver, lá no céu a estrela mais brilhante irá piscar, como se pudesse dizer: Bom dia, como vai você?

 
 
 

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